As novas tecnologias têm vindo a provocar uma verdadeira revolução no mundo atual. Elas acrescentam indiscutíveis e incontornáveis vantagens ao nosso quotidiano, condicionando uma inevitável rota sem retorno.
Numa fase embrionária de instalação, a pandemia veio acelerar o ritmo da implementação de algumas mudanças que, na sua ausência, demorariam décadas. Contudo, o entusiasmo com estas novas oportunidades não é consensual entre os especialistas. Alguns neurocientistas responsabilizam-nas por um impacto negativo no desenvolvimento cerebral e na saúde global das crianças.
O cérebro humano é um órgão incrível, com um potencial riquíssimo. A construção da arquitetura cerebral dependente de uma miríade de estímulos externos que lhe chega na infância. A curiosidade inata das crianças incita ao jogo e à criatividade, proporcionando-lhes oportunidades promissoras para descodificar o mundo que as rodeia. Cabe aos adultos que delas cuidam orientar esta aprendizagem adequadamente. Disponibilidade, atenção e afetividade trarão qualidade ao tempo partilhado pela família, por mais escasso que seja. Oportunidades desperdiçadas nos primeiros anos de vida poderão ser difíceis de repor no que concerne à aquisição de saberes primordiais ao nível da linguagem, coordenação motora, pré-requisitos de matemática, hábitos sociais e gestão emocional.
Tem-se vindo a constatar que o uso inadequado de ecrãs (tablets, telemóveis, computadores, televisões, consolas de jogo) apresenta um impacto direto na visão (miopia) e pode interferir negativamente com a aquisição de algumas competências, nomeadamente a linguagem e capacidades executivas, como a concentração, a memória e o controlo da impulsividade. Por outro lado, o precioso tempo que rouba a outras importantes atividades diárias pode interferir negativamente com a formação geral, o desenvolvimento psicossocial e a saúde global da criança.
Alguns estudos publicados referem que um adolescente de 18 anos já esteve exposto a conteúdos recreativos em média o tempo equivalente a 30 anos escolares. Exposição precoce pode ser responsável por lacunas na interação humana (especialmente dentro da família), limitando a qualidade e quantidade das primeiras trocas verbais, comprometendo dessa forma o desenvolvimento da linguagem e da sociabilidade. Por outro lado, a redução do tempo disponível para a realização dos trabalhos de casa pode traduzir-se em prejuízo nos processos de memorização, de consolidação dos conteúdos escolares, de autodisciplina e de responsabilidade individual.
Em termos de saúde, a exposição noturna e antes de deitar compromete a quantidade e a qualidade do sono indispensável ao crescimento e ao repouso mínimo necessário. Por outro lado, fomenta um estilo de vida sedentário, promovendo a obesidade e o risco de doença cardiovascular, enquanto compromete a psicomotricidade e a literacia motora. Alguns conteúdos banalizam a violência, fomentam a agressividade e promovem alterações emocionais, como a ansiedade e a depressão e, de forma sub-reptícia, podem incitar ao consumo de tabaco e de bebidas alcoólicas e contribuir para a conceção de estereótipos aberrantes de beleza e conceitos culturais. Os ecrãs devem estar desligados sempre que outra tarefa está em curso, pois o cérebro humano é incapaz de realizar duas tarefas em simultâneo. A dependência de ecrãs parece agravar-se com a precocidade com que se inicia a sua exposição.
Cientes do problema, inúmeras entidades (Organização Mundial de Saúde e Associações Pediátricas de diversos países) começaram já a emanar recomendações para um uso adequado dos ecrãs. A duração da exposição, os conteúdos e a forma de receção da informação constituem os itens cruciais.
De forma sumária, não é recomendável a exposição a qualquer tipo de ecrãs antes dos 24 meses de idade. Constitui exceção a eventual necessidade de conectar a criança com algum familiar à distância. Entre os 2 e os 5 anos de idade, a exposição deve ser reduzida ao mínimo de tempo possível, limitada a conteúdos de elevada qualidade pedagógica, sempre com um adulto a supervisionar, ajudando a criança a compreender e a aplicar à realidade circundante o que ela está a ver. O tempo total máximo de exposição a conteúdos recreativos não deverá exceder os 60 minutos diários acima dos dois anos de idade. Todos os ecrãs devem ser desligados pelo menos uma hora antes da criança/adolescente ir dormir, durante a noite e antes da ida para a escola, no decorrer de outras atividades, à hora das refeições e sempre que nenhuma pessoa esteja a prestar atenção ao seu conteúdo. Aprendendo a “fazer uma coisa de cada vez” a criança vai desenvolvendo a sua capacidade de concentração.
A televisão e outros ecrãs não devem ser permitidos nos quartos de dormir, devem limitar-se ao número mínimo indispensável pela casa e a sua utilização deve ser programada, negociada, supervisionada e monitorizada pelos adultos (para o que existem aplicações próprias), o que promove a aquisição do autocontrolo. Os conteúdos meramente recreativos, publicitários, violentos e inapropriados devem ser evitados em todas as idades e a criança deve ser orientada para o uso seguro e produtivo das novas tecnologias desde uma fase muito precoce. Os programas utilizados devem ser divertidos, construtivos, adequados à idade de quem os vê, partilhados pelo maior número possível de elementos da família e os seus conteúdos devem incentivar hábitos de vida saudável e fomentar o pensamento crítico e criativo.
As recomendações são extensivas aos adultos, pois o uso de dispositivos digitais pelos adultos também interrompe as interações familiares. Por outro lado, as crianças são muito melhores a imitar do que a obedecer a ordens. Assim, desafiam-se as famílias a contabilizar o tempo efetivo que cada um despende em atividades recreativas digitais. Caso se constate um desajuste face às recomendações, sugere-se imaginação e criatividade para encontrar programas alternativos mais sedutores. Atividades divertidas e partilhadas pela família (tais como leitura, atividades ao ar livre, trabalhos manuais) poderão tornar-se muito aliciantes e construtivas, enquanto reforçam os laços afetivos e dispõem bem toda a família. Com bom senso e equilíbrio será possível usufruir das vantagens, enquanto se minimiza o impacto negativo que as novas tecnologias podem ter na vida e desenvolvimento das nossas crianças.
Originalmente publicado no jornal ‘O Almeirinense‘ em 15 de Abril de 2023.
Dra. Teresa Gil Martins
A Dra. Teresa Gil Martins é especialista em Pediatria na Unisana Hospitais – Clínica do Centro. Com formação em Medicina pela NOVA Medical School e especialização em gestão de serviços de saúde, dedica-se a oferecer cuidados pediátricos completos e acessíveis, garantindo um atendimento de excelência para crianças de todas as idades. Para mais informações sobre o seu percurso, consulte a sua página aqui.